Arte e Ciência (HENRIQUE, 2003, p. 1)

Antes de abordar o domínio da acústica musical é oportuno tecer algumas considerações despretensiosas sobre arte e ciência para melhor compreender a acústica musical na correlação científica e artística. Convém recordar que arte e ciência são dois conceitos que em determinados períodos tiveram um caráter de oposição, e noutros se complementaram como se pertencessem a um corpo de conhecimento alargado.

Conceitos como harmonia, equilíbrio, proporção, simetria estão presentes em muitas obras de arte às quais se associa beleza. No entanto, é a matemática que nos ajuda a encontrá-los. Durante a Renascença, Leonardo da Vinci, Alberti, Fra Luca Pacioli e outros, consideravam o conhecimento como condição prévia necessária para qualquer tipo de ação, inclusive o da criação artística. Nesta época essencialmente pluridisciplinar, arte e ciência tinham muitos pontos de contato.

A noção de proporção aritmética era tida como regra essencial na música e na arquitetura, por exemplo, havendo também perfeita consciência de que a anatomia do corpo humano encerra essa harmonia de proporções. Na obra em latim De Re Oedificatoria, publicada em Florença em 1485, Alberti expõe as condições necessárias à criação do belo, e defende que os intervalos musicais agradáveis ao ouvido – 8ª, 5ª e 4ª – obtidos por divisão de uma corda (1/2, 2/3, 3/4), representam proporções que servem igualmente à arquitetura e às artes plásticas (citado por Freitas, 1977). Esta ideia vem mesmo da Antiguidade, e está presente em todos os aspectos da criação humana.

Talvez o caso mais marcante de relação entre arte e ciência ao longo da História seja o do número de ouro, ou secção áurea a que Fra Luca Pacioli chamou a divina proporção.

O número de ouro, ϕ, é uma constante derivada de uma relação geométrica, e à semelhança de π ou e, é um número irracional. Embora habitualmente se designe número de ouro, não é um número, mas sim suma proporção (Lawlor, 1982).

A divina proporção encontra-se também em muitos aspectos da criação musical e de construção de instrumentos. Muitos luthiers utilizam o número de ouro nos seus traçados de violinos conseguindo formas harmoniosas e funcionais (Leipp, 1965).

Apesar dos pontos de contato referidos, e de outros, existem diferenças objetivas entre arte e ciência. O domínio artístico foi sempre conotado com criação, fruto da sensibilidade humana, enquanto que o domínio científico dizia respeito à compreensão e explicação dos fenômenos, e estabelecimento das leis da natureza. Esta dicotomia encarada de modo radical, não é hoje aceite à luz da epistemologia contemporânea. Na concepção tradicional do conhecimento científico o investigador assumia uma posição de neutralidade face ao objeto a investigar. Esta perspectiva está ultrapassada, porque em muitas situações, a simples presença do investigador altera o comportamento do objeto da investigação. Por outro lado, no campo da estética, para além da sensibilidade, que é dominante, também se deve considerar uma segunda dupla vertente – a cognitiva e técnica –, que lhe servem de suporte, e a enriquecem.

Um dos aspectos fundamentais que diferencia o espírito científico do artístico é a reprodutibilidade das experiências e dos resultados, o que o afasta da experiência e criação estética, consideradas únicas, irrepetíveis. Outro aspecto muito importante do método científico é a confrontação com a realidade (referimo-nos à situação mais habitual em que existem os meios para fazer a experimentação imediata). No entanto, por vezes acontece que para determinadas invenções teóricas não há ainda capacidade tecnológica de as confrontar com a realidade. As teorias de Einstein, por exemplo, que só foram demonstradas experimentalmente bastantes anos após a sua publicação. Isso pode tornar ainda mais extraordinária a invenção porque, apesar de não ter sido confrontado com a realidade, a convicção do investigador é tão forte que ele arrisca a teoria sem poder prová-la na prática.

Ciência e estética refletem duas atitudes distintas do homem perante a realidade: o investigador tem necessidade de a compreender, o artista tem necessidade de a captar e com ela comunicar. No primeiro, há maior intervenção da racionalidade, no segundo, há maior intervenção da sensibilidade. O investigador tem um percurso mais analítico. Para Gusdorf (1984: p. 321): "Quanto mais o conhecimento científico se aprofunda, mais se tem a impressão que a parte da realidade diminui, e que a da interpretação aumenta".

Na criação artística não há limites, pelo menos do ponto de vista estético. Na investigação científica existem limites bem definidos pelo conhecimento da realidade, pelas teorias em vigor, e através de um controle crítico rigoroso que é imposto pelas regras de própria cientificidade.

A criação artística é uma forma de intuição, que pressupõe, contudo, uma base de conhecimentos sólidos. Essa "ideia" intuitiva é tanto mais rica quanto mais conhecimentos e cultura o artista tiver. Por outro lado, o que diferencia um grande investigador é ter uma forte intuição a partir da observação dos fenômenos. Portanto, o artista, embora não tenha uma atitude científica, tem uma base sólida de conhecimentos técnicos na sua área que correspondem a uma parte racional e científica. O investigador faz uma abordagem científica, mas tem também uma parte verdadeiramente criativa, (podemos mesmo dizer artística), na visão de certos fenômenos e teorias.

O filósofo Karl Popper dedicou grande parte da sua vida à compreensão e métodos do trabalho científico. Para Popper, a diferença essencial entre criações científicas e criações artísticas é que as primeiras resultam em teorias que são o resultado de novas formulações e que podem ser refutadas, enquanto que as criações não-científicas não são teorias, logo não podem ser refutadas (Ziolkowsky, 1982).

Relativamente ao conceito de arte é muito difícil, senão impossível, a sua definição: "Todos os esforços neste sentido têm conduzido, invariavelmente, a resultados nulos: - fracasso confessado por muitos filósofos da estética" (Salazar, 1961: p. 1).

Estas palavras de Abel Salazar resumem de certo modo um dos aspectos fundamentais do seu ensaio Que É Arte?: a inutilidade de tentar definir arte. Talvez o mais prudente seja uma definição de tal modo lata que dê margem para toda a subjetividade que é inerente a este conceito: "Falamos de arte cada vez que uma qualquer atividade exige daquele que age, uma qualidade pessoal que é posta em evidência" (Ansermet, 1961; 1989: p. 178).

Voltando a Abel Salazar, a propósito da finalidade da arte: "O artista, ao criar uma obra de arte, não tem outra finalidade que não seja o próprio ato de criação; realiza-se neste ato, e assim, no ato se resume a finalidade da obra de arte. Uma vez realizada, a obra de arte não mais interessa o artista; é um fruto maduro, que caiu. Em realidade o artista não procura nem o Belo, nem o Sublime, nem o Real, nem qualquer outra finalidade estética; ele realiza-se simplesmente" (Salazar, 1961: p. 89).

A concluir, cito Donald Hall que terminou o seu excelente livro Musical Acoustics com o epílogo "Ciência e Estética".

"... Seria um erro encarar ciência e estética como mutuamente hostis, ... A estética não existe num domínio totalmente etéreo. Ela trata de impressões e sentimentos causados por objetos reais e acontecimentos reais, e a ciência pode certamente ajudar a definir esses objetos e acontecimentos com mais precisão. Por outro lado, os cientistas preocupam-se mais do que a maioria das pessoas se apercebem com os aspectos estéticos do seu próprio trabalho. Entre os seus métodos, experiências e teorias, os cientistas distinguem: alguns são belos, e outros não. Naturalmente eles preferem muito mais os belos. Por exemplo, no desenvolvimento da sua teoria da relatividade, Einstein foi guiado muito mais por uma procura de elegância, do que por fatos experimentais. Os cientistas apreciam especialmente a beleza das estruturas ordenadas e simétricas. Eles compreendem que mesmo que a ciência se construa com fatos, uma mera acumulação de fatos não é ciência, assim como uma pilha de tijolos não é uma casa" (Hall, 1991: p. 443).

REFERÊNCIA
HENRIQUE, Luis L. Acústica musical. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 1130 p.

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