Civilização greco-latina / Ficha de citação 1 (CANDÉ, 2001)
É na Grécia que aparecerão pela primeira vez, no nível de uma consciência musical, a ambição de criar e o gosto de escutar. Há milênios a música visava a eficácia; religiosa, mágica, terapêutica, lisonjeira, militar, ela se dirigia aos deuses e aos reis, às forças invisíveis e visíveis. Entre os Gregos, ela se torna arte, maneira de ser e de pensar, revela sua beleza ao primeiro público socialmente consciente. (p.66)

A cultura musical da Grécia primitiva é-nos tão pouco conhecida quanto a das outras civilizações pré-helênicas. O que seria essa música cretense que participava do luxo dos palácios de Cnosso e, depois, de Micenas? Sem dúvida, ela era, como a religião dos povos egeus, fruto de influências convergentes – da Mesopotâmia, da Fenícia, da Ásia Menor, do Egito sobretudo – favorecidas pelas conquistas e pela intensa atividade comercial e marítima cretense, mas varridas ou misturadas periodicamente pelo macaréu indo-europeu… (p.66)

Colonizando a Grécia, recentemente ocupada pelos aqueus, e aí fundando a civilização micênica, Creta traz uma cultura já milenar. A arte micênica, difundida do Peloponeso à Tessália, é calcada na do Egeu; logo, há motivos para se pensar que essa assimilação também se tenha estendido à música. Também se pode supor que uma influência musical não desprezível tenha vindo do norte da península balcânica, pois o mito de Orfeu, que remonta ao século XIV antes de nossa era, é originário da Trácia (atual Bulgária), por onde também virá Dioniso… (p.66)

A hegemonia que Micenas impõe, por sua vez, ao mundo egeu e à Ásia Menor a partir de 1400 a.C. (data tradicional da vitória simbólica de Teseu sobre o Minotauro) é varrida por volta de 1330 pela invasão dos dórios (Os helenos, que apareceram na Grécia a partir de 2000 a.C., eram um povo da Tessália, que deu origem a quatro ramos: aqueus, dórios, jônios e eólios.). a Grécia mergulha então nas trevas, enquanto uma parte de sua população emigra para a Ásia Menor, levando a lembrança de Micenas, de sua cultura, seus mitos, suas lendas e seus heróis. Três séculos mais tarde, estes últimos entrarão para a lenda de todos o tempos, graças ao gênio de um de seus descendentes, Homero. (p.66)

Em contato com os lídios e frígios, cujas caravanas estabelecem o contato entre a Mesopotêmia e a costa mediterrânica, os emigrantes aqueus, sucessores de Ulisses, Agamêmnon e Menelau, desenvolvem uma nova cultura greco-oriental nos ricos entrepostos que criam na Jônia e na Eólia: Quios, Mileto, Lesbos, Samos, Izmir, Éfeso. Essa costa e suas ilhas da Ásia Menos, na encruzilhada das raças e dos continentes, tornam-se um rico foco de civilização que se irradia, por sua vez, para todo o Mediterrâneo oriental, em particular para Creta e para o Peloponeso dórico. Homero é um desses gregos da Ásia cujas antigas tradições fecundaram a cultura helênica. Emcontramos na Ilíada e na Odisséia numerosas alusões à música, associada ao entretenimento do povo e à celebração de circunstâncias tristes ou alegres. Talvez ela desempenhasse um papel importante na educação dos heróis, pois sabemos que Aquiles aprende a tocar lira com o centauro Quíron. Aliás, a lira acompanhava a recitação dos próprios poemas homéricos. (p.67)

Talvez isso seja tudo o que sabemos da música grega anterior ao século VII a.C. Cultivada em terra jônica a partir de remotas tradições creto-micênicas, enriquecida pelas contribuições frígia e lídia, talvez também por influência egípcia, fenícia e assírio-babilônica, é finalmente reimportada para a Grécia e difundida pouco a pouco por todos o novos territórios de colonização (Olimpo, a quem, segundo a lenda, os gregos devem sua cultura musical, é frígio. Isso confirma a importância da influência asiática na música helênica.). (p.67 - adaptado)

A Poesia Lírica

Os primeiros artesãos da civilização musical helênica, nos séculos VII e VI a.C., eram gregos da Ásia Menor, atraídos pelo desenvolvimento das cidades da Ática e do Peloponeso, e pelo prestígio das novas colônias da Itália meridional (Siracura, Síbaris, Crotona, Tarento, Metaponto), ou que fugiam da dominação persa. Assim é que Arquíloco de Paros se estabeleceu em Metaponto, Pitágoras de Samos em Crotona, Anacreonte de Teos em Atenas, Álcman de Sardes e Calino de Éfeso em Esparta, assim como Terpandro, Safo e Alceu, todos os três de Lesbos... Sob o impulso destes últimos, abrem-se em Esparta as primeiras escolas gregas de música, enquanto desabrocha a lírica jônica... (p.67)

Na época em que Arquíloco e Calino (os primeiros músicos gregos conhecidos) cultivam a elegia, em que Safo e Alceu ensinam canto e lira, em que Dioniso, vindo de Trácia, é recebido por Apolo em Delfos, a música, arte independente, recebe o nome de σορία. É assim que Sólon ainda a chama. De modo geral, o σορός é o homem competente cuja "sabedoria" implica o conhecimento e a mestria, o que encontraremos na ars dos latinos. Num verso homérico, a palavra designa a habilidade do construtor de navio (Odisséia, verso 412). Logo, o músico passa a ser muito mais o depositário de uma ciência e de uma técnica do que de um vago gênio ou da inspiração das Musas. Seu saber e seu talento lhe vêm, por certo, do "ensinamento das Musas", mas foi necessário desenvolver seus dons pelo estudo e pelo exercício. Assim, a música requer uma instrução que não pode ser puramente estética: ela se torna uma disciplina escolar, um objeto de mestria, proporciona a medida dos valores éticos, é uma "sabedoria". (p.70)


Nascida no Peloponeso dórico no início do século VII a.C., a poesia lírica faz a canção e a dança saírem do anonimato das festas populares; ela coloniza de certa forma o folclore em benefício de uma elite, mas cria formas e leis musicais de que toda a música grega será tributária. A poesia lírica exige uma música invariável, como a de nossas melodias e canções. Essas composições fixas têm o nome de nomos (νόμοι), palavra que, em sua acepção corrente, designa algo fixo e determinante, uma lei, uma tradição. (p.70)

Vários tipos de nomos eram praticados:

a) nomos citaródicos: cantor acompanhando-se à cítara (ele é seu próprio citaredo);

b) nomos aulódicos: cantor acompanhado por um tocador de aulo, ou auleta;

c) nomos píticos: aulo solo; verdadeiros quadros musicais, esses nomos evocam as peripécias do combate de Apolo contra a Píton;

d) nomos coródicos: coros.


Ética musical clássica

Os períodos mais dramáticos da história são, muitas vezes, os mais ricos no plano das artes e do pensamento. Assim, é num mundo terrivelmente violento e cruel que se forma e se desenvolve a exemplar cultura da Grécia antiga. Por toda parte, esse mundo de tiranias e de revoltas, de conquistas e de massacres, de ambições e angústias, segrega, por reação, seus filósofos e profetas, quase no mesmo momento: Zoroastro na Pérsia (início do século VI a.C.), Buda na Índia (563-483), Confúcio (551-478) e Lao-tsé (605-520) na China, os profetas judeus Daniel, Ezequiel e Zacarias cativos na Babilônia (586-539), Pitágoras (572-493) e os órficos na Grecia… (p.71)

As ideias pitagóricas não tardam a ter considerável influência sobre o pensamento e a música dos gregos, que se tornaram indissociáveis. Elas favorecem o desenvolvimento da ética musical que Platão e Aristóteles tornarão um dos fundamentos de suas doutrinas. A música deixa de ser um privilégio; ela se torna indispensável à educação de todo homem livre, é a fonte da sabedoria. Forma-se uma numerosa classe de diletantes, capazes de constituir coros homogêneos… (p.71)

Devemos a Pitágoras a primeira lei física (e não metafísica) de acústica musical. Ele observa, de fato, que os comprimentos de duas cordas igualmente tensas devem estar numa relação de 2:1 para dar a oitava, 3:2 para dar a quinta, 4:3 para dar a quarta. Esses números (1, 2, 3, 4) formam a tétrade privilegiada, cuja soma é 10. Eles permitiam definir todos os outros intervalos pitagóricos. (p.71)


A influência de Lasos (520 a 480), é considerável: não só ele define as "harmonias" e os "tons", como estabelece um sistema de conveniências entre harmonias, gêneros poéticos e circunstâncias. É o ponto de partida da ética musical clássica. Seu aluno Píndaro de Tebas (518 a 446 a.C.), também liberal e progressista, realiza a perfeição da coródia e é o primeiro a apresentar uma teoria da imitação, um dos fundamentos da ética musical. (p.72 - adaptado)

É de Damon que data uma verdadeira teoria dos modos e dos tons, de sua conveniência às circunstâncias, de seus benefícios ou de seus perigos para o desenvolvimento das virtudes e o governo do Estado. Sob a proteção de Palas Atena, os metres de todas as escolas sustentarão a partir de então uma ética musical imperiosa contra as extravagâncias dos profissionais. Damon subscreve o princípio ateniense de substituir a ação punitiva das leis pela educação dos costumes, propondo o ensino da música (e a educação pela música) como instrumento do progresso moral, antes da ginástica. Sua doutrina, como a dos pitagóricos e, mais tarde, de Platão, baseia-se na imitação, cujo caminho Lasos mostrou. (p.72)

Para os primeiros pitagóricos, a boa música já é a expressão sensível das relações matemáticas que regem o mundo. Nela, o espírito pode reconhecer a harmonia universal e a alma a ela se acorda, o que equivale a dizer que a música não poderia ser considerada levianamente uma simples diversão. Sua importância exige que uma casta erudita, tendo aprofundado seus segredos, defina o etos dos modos e dos ritmos, determinando o valor aritmético exato dos intervalos e das relações de duração. Vai-se construir, assim, uma verdadeira teoria da boa – mais que da bela – música. (p.73)

Mas como a música pode servir de intermediária entre a ordem natural e a alma humana? Pela mímesis (imitação), responde Damon: a arte é imitação, e a alma imita, por sua vez, os simulacros da arte. Ora, em música os modelos não são objetos, mas ideias, ações e a ordem das coisas. Portanto, pode-se imitar tanto o bem como o mal; isso é um perigo para o Estado, que deve zelar pela qualidade da educação. (p.73)

Apesar da evolução dos usos musicais, Platão permanece fiel à doutrina de Damon na República. Em As leis, ao contrário, ele ressalta o prazer musical, a competência dos músicos profissionais, o papel da música nos banquetes e renuncia ao princípio da imitação. Considera, porém, que a música pode formar o juízo da criança ligando noções morais a seu prazer. (p.73)

Aristóteles é mais audacioso, mais livre e mais coerente. Conserva a ideia pitagórica segundo a qual a harmonia musical comunica ao espírito o conhecimento da harmonia do mundo, considerando que ambas se exprimem pelas mesmas relações numéricas. Mas dá origem a um novo sentimento estético: tendo constatado a relativa inutilidade moral da música, que não tem mais, na educação, a mesma importância da ginastica e da escrita, faz dela uma arte, no sentido moderno do termo, uma arte que pode agir profundamente sobre a alma, rejubilando-a, e que sempre deve ter lugar na educação (também há contradições na doutrina musical de Aristóteles). Na diversidade dos tons e das harmonias, que os profissionais utilizam sem restrições, Aristóteles distingue os que podem convir aos diletantes. É fiel, nisso, à tradição damoniana, muito embora se afaste da teoria da imitação. Em suma, para ele, critérios éticos devem controlar o fenômeno reconhecido do prazer auditivo; portanto, o ensino deve formar o gosto. (p.73)

Tanto em Platão com em Aristóteles (e como nos pensadores chineses), as mesmas razões que atribuem à música um valor educativo conferem-lhe uma influência sobre o governo do Estado. "Não se pode mudar o que quer que seja nos modos da música", escreve Platão, "sem que também mude as leis fundamentais do Estado, como diz Damon e como eu mesmo creio." E Aristóteles afirma que as harmonias "sobretensas" (utilizadas num tom agudo) levam ao despotismo e as harmonias "relaxadas" aos excessos democráticos, ao passo que os tons intermediários dispõem ao regime político perfeito. Essas conclusões se referem ainda à teoria damoniana da mímesis, tanto mais que se afirma que cada modo e cada tom imitam os costumes e o regime político de seu país de origem. Assim, o modo dório nacional refere-se a Esparta e aos severos costumes dos lacedemônios: é o modo da coragem e da sabedoria... Os diferentes pés e metros também são carregados de um etos particular, ligado de forma mais ou menos confusa à sua origem. (p.74)

Aristóteles acrescenta a essas especificações éticas a doutrina original da kátharsis (Política, VIII, 7). Trata-se de um método psicoterápico pela analogia, em que a música suscita na alma enferma sentimentos violentos que provocam uma espécie de crise, favorecendo o retorno ao estado normal. Aristóteles nota que a kátharsis não age sobre a vontade; logo, é preciso compreender que ela desencadeia uma espécie de desafogo, de movimento para fora de si (e-moção). Ele escreve na Poética: "A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa de certa extensão (...) imitação que é feita das personagens em ação e que, suscitando piedade e temor, efetua a kátharsis própria a semelhantes emoções.". (p.75)

É difícil para nossos contemporâneos imaginar uma filosofia musical tão estranha a nosso modo de viver e de pensar. Só poderiam pertencer hoje a um etos da música os hinos patrióticos e militares, na medida em que pretendem exaltar na alma dos cidadãos as virtudes guerreiras, a solidariedade vingadora e o amor à pátria gloriosa. Em compensação, faz tempo que a música litúrgica obedece muito mais a critérios estéticos do que a imperativos éticos. (p.75)

A decadência

A segunda metade do século IV vê acentuar-se um processo de decadência, da qual Aristófanes percebera os primeiros indícios. Em As rãs (405 a.C.), ele critica a música de Eurípides, considerada por demais refinada, sem amplitude nem dignidade (De um modo geral, a comédia institui um novo tipo de música leve, num estilo mais popular, em que a, "música erudita" é, por vezes, tema de paródias.). Aristóxeno de Tarento (c. 370-300 a.C.), brilhante discípulo de Aristóteles, a quem devemos a primeira estética musical verdadeira, ao mesmo tempo que uma teoria completa, também critica a música de seu tempo e afirma a superioridade do "classicismo" de antes de Platão. Ele recrimina os modernos por um juízo superficial que o espírito não controla; mas, sobretudo, acha-os de ouvido pervertido e grosseiro, a ponto de não mais distinguirem os pequenos intervalos do gênero enarmônico. Mais tarde, os profissionais serão criticados por abusarem desse gênero, por superarem em demasia a oitava, por mudarem inconsideradamente de modo... Em todos os tempos, a música moderna é acusada de degeneração! (p.76)

No século IV a.C., a música desvalorizou-se em relação ao verbo, poético ou didático. Desde o século V, os sofistas, esses primeiros "intelectuais", opunham à sabedoria acusmática as qualidades demonstrativas da razão dialética. Para eles, a música é uma arte prazenteira, de ação moral indeterminada. Depreciando assim o ensino musical, eles por certo favoreceram a especialização, da qual procede a decadência da música grega. (p.76)

Em suas tragédias, os sucessores de Ésquilo, Sófocles e Eurípides abandonam com frequência a música dos coros à fantasia dos coreutas, cujo número diminui pouco a pouco, ao passo que se acentua sua especialização (em Delfos, em meados do século III a.C., não serão mais que sete). As peças muitas vezes não têm mais partes líricas, mas nelas executam-se intermédios musicais, sem qualquer relação com a ação, em que grandes "compositores" (Melanípides, Frínis, Timoteu) introduzem toda sorte de requintes. Chegamos a pensar na ópera italiana do século XVII... quanto à música instrumental – citarise, aulese, sinaulia, duos de aulo e cítara –, ela suscita prodígios de virtuosismo e é objeto de verdadeiros concertos públicos, fórmula que nossa civilização só descobrirá vinte séculos mais tarde. A música se torna uma arte de especialistas em que o ouvinte não pode compreender sem uma instrução adequada: ele é consumidor de música e os especialistas irão esforçar-se em produzi-la para ele. (p.76)

O duplo processo de especialização e de desvalorização do ensino musical gera um desprezo pela profissão de músico, que subsistirá até a música se tornar, na Idade Média, monopólio dos mosteiros. Muitos textos, de Aristóteles ao Império Romano, atestam esse desdém; por vezes, chega-se a criticar os diletantes por tocarem bem demais para pessoas de qualidade! Todavia, pode-se ver uma reação sadia e salutar na oposição às doutrinas rigorosas dos teóricos e dos moralistas, na contestação do princípio de imitação damoniano, na reivindicação de uma música prazenteira. Mas, se na história da arte o que se chama decadência costuma ser um vanguardismo que prepara um novo alvorecer, para a Grécia antiga a decadência terá sido um escorregão até um longo eclipse das tradições musicais. (p.76)

Roma

A decadência da cultura musical helênica, que se acentuou profundamente sob a macedônia (359 a 196 a.C.), não comprometeu sua influência, que se exerceu em todo o Mediterrâneo romano até os primeiros séculos da cristandade. Sem dúvida, nunca houve música latina, mas uma maneira latina de fazer música grega! Com novos nomes, os mesmos instrumentos são dedicados às mesmas funções. Talvez tenham sido introduzidos em Roma, com as mesmas tradições musicais helênicas, desde o século V a.C. pelos etruscos, porque em seus túmulos são instrumentos gregos o que encontramos. (p.80)

REFERÊNCIA
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2001. Vol 1 - 640 p., Vol 2 - 512 p.

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