A Herança Antiga / Ficha de citação 4 (CANDÉ, 2001)
Não há soluções de continuidade, em matéria de teoria musical, entre a Antiguidade e a Idade Média. Por uma torrente de textos não raro ambíguos ou lacônicos, carentes de método e de espírito científico, os teóricos dos dez primeiros séculos da cristandade garantiram por compilações sucessivas a perenidade da ciência helênica. Embora o respeito pela coisa escrita se torne uma obsessão, em prejuízo da imaginação, ainda assim devemos aos espíritos notáveis que recolheram a herança antiga e alimentaram sua reflexão o essencial de nosso sistema musical. (p.196)
Claro, cada geração acrescenta à tradição sua interpretação, seus erros, o espírito de seu tempo. A teoria grega evidentemente corrompeu-se no curso dos séculos, num mundo transformado pela cultura latina e pelo cristianismo. Já o tratado de Aristóxeno de Tarento (século IV antes de nossa era) acaso não consagrava uma certa forma de corrupção ou de desvio de teoria clássica? Mas as raízes não foram cortadas, pois as exegeses e as compilações sucederam-se continuamente. (p.196) Boécio (c.480-c.526) O filósofo romano e ministro do rei dos ostrogodos Anicius Manlius Saverinus Boethius, é conhecido por suas traduções e comentários da obra de Aristóteles. Foi um dos principais intermediários entre a cultura greco-latina e a música medieval, juntamente com Teodorico, o Grande, e seu compatriota CASSIODORO (C. 480-575), cônsul e prefeito do mesmo Teodorico. Na sua obra De Institutione Musica, importante tratado em cinco volumes e suma dos conhecimentos teóricos herdados dos gregos, é apresentada uma descrição da lenda dos martelos (por um desígnio divino, Pitágoras passou num ferreiro e ao ouvir os diferentes sons produzidos pelos martelos batendo na bigorna, notou que os sons eram consonantes. Ao chegar em casa, resolveu fazer uma série de experiências com recipientes com água, pesos suspensos em cordas, e com flautas, de modo a comprovar as relações numéricas referentes às consonâncias dos martelos que tinha ouvido, chegando a conclusões idênticas para todos os casos.) (HENRIQUE, 2003, p. 16). Essa obra serviu de referência constante aos teóricos da Idade Média. Ela se baseou principalmente em Ptolomeu, não é possível ter certeza que ele tenha estudado esse autor no texto. A obra de Boécio é de grande importância, mantendo-se praticamente única até o século XV, altura em que os teóricos se interessam de novo pelas fontes da cultura grega (Palisca, 1980). Até Guido d’Arezzo (c. 990-c. 1050), os teóricos contentaram-se com desenvolver os mesmos princípios, sem proporcionar enriquecimento notável à ciência musical. Alguns, porém, desempenharam um papel histórico e didático importante, especificando a teoria e codificando os usos musicais de seu tempo. Foram estes ALCUÍNO (735-804), ministro de Carlos Magno, cujo tratado (que nos dizem ser importantíssimo) está perdido; AURELIANO DE RÉOMÉ, autor de uma Musica disciplina (c. 850), em que são definidos os oito "tons" eclesiásticos, depois das "harmonias" gregas; HUCBALDO (c. 840-930), monge de Saint-Amand, um dos raros que observou em Boécio o sistema de notação dos gregos e propôs acrescentar aos neumas letras do alfabeto para precisar a altura dos sons; o autor anônimo de um Enchirias de musica (c. 900, conhecido sob o título errôneo de Musica enchiriadis), em que se encontra a primeira peça polifônica notada; Odo, abade de Cluny (879-942), autor presumido de um Dialogus de musica (grande obra didática em que se acham empregadas, pela primeira vez, letras para designar as notas da escala) e de um importante Tonarium. (p.197)
Na falta de notação, as gerações sucessivas transmitiram-se uma ciência, uma mestria (ars), um humanismo, linha de ouro que une nossa cultura à Grécia clássica. Formou-se no mundo mediterrânico um sistema musical relativamente coerente, cuja universalidade pode ser comparada à da matemática. Até o século XII ou XIII, não há incompatibilidade entre os sistemas musicais, que podem referir-se às mesmas fontes. Os músicos do Oriente e do Ocidente encontram ao longe vivos sucessos, e o ensinamento dos teóricos persas coincide em mais de um ponto com o de Boécio e de seus sucessores – quando Afonso X, "El Sabio", introduzir o ensino de música na Universidade de Salamanca, os estudantes ainda poderão forma-se nessas diferentes culturas. (p.198) REFERÊNCIAS
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2001. Vol 1 - 640 p., Vol 2 - 512 p.
HENRIQUE, Luis L. Acústica musical. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 1130 p. |
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