Escalas, Cantochão e Modo / Ficha de citação 5 (CANDÉ, 2001)
A natureza das escalas fundamentais e seus "modos" de utilização, implicam não o indivíduo, mas a civilização. Na infinidade dos sons possíveis, cada civilização descobre relações, "intervalos" privilegiados. Ora parecem ser espontaneamente adotados, como se estivessem inscritos no código genético de um povo: transmitidas pela prática, sua entoação exata e suas condições de emprego serão definidas a posteriori; ora são, ao contrário, escolhidos a priori pelos teóricos, que mandam construir os instrumentos segundo suas prescrições e zelam pela conformidade da prática com a teoria. (p.102)

Escalas

As escalas fundamentais, que formam o repertório dos intervalos característicos de um sistema musical, estão, de certa forma, para a música assim como um inventário alfabético dos fonemas estaria para a linguagem. Selecionando alguns desses intervalos, formam-se diferentes escalas modais ou escalas usuais do sistema: sucessão de sons dispostos, no interior de uma oitava, na ordem das frequências crescentes ("escala ascendente") ou decrescente ("escala descendente"). Essas escalas são aspectos da oitava; os modos são maneiras de ser e de operar do sistema. Esses dois conceitos costumam ser confundidos; assim, atribui-se uma teoria modal a tradições que consideram apenas diferentes aspectos da oitava (China, Japão, Tailândia, Camboja, Laos). Os principais elementos de definição e de identificação de um modo são os seguintes: (p.102)

a) A referência a uma escala modal, em que são estabelecidas relações hierárquicas entre diferentes graus;

b) Os intervalos ou as fórmulas melódicas característicos;

c) Certo etos ligado ao modo, que rege de maneira mais ou menos estrita seu emprego;

d) Às vezes, um estilo particular de execução, principalmente no plano dos ornamentos.

Portanto, é insuficiente definir um rāga indiano ou um māqam árabe por meio de uma escala; dois modos podem, aliás, utilizar a mesma escala modal e serem profundamente diferentes. (p.102)

No mundo ocidental recente, a escala fundamental teórica é o dodecacorde temperado, escala de doze semitons matematicamente iguais, que engloba as duas escalas tradicionais de sete sons: uma no modo maior, outra no modo menor, segundo a posição de duas notas móveis situadas no terceiro e no sexto graus do heptacordes. Além de não ser universal, veremos que esse sistema também não engloba todas as estruturas melódicas da prática musical ocidental. É evidente, sobretudo, que a igualdade matemática dos semitons é uma ideia abstrata. (p.104)

Cantochão

O canto monofônico e em uníssono, originalmente sem acompanhamento, empregado em liturgias cristãs.

Chama-se "cantochão" ou "canto plano" o conjunto das melodia em latim da liturgia cristã do Ocidente. Essa denominação está sujeita a várias interpretações. Assim, no século X, planus qualificava um canto no registro grave; mas, no século XIII, a música plana de ritmo livre se opõe à música mensurata, cuja duração relativa das notas é fixada. A partir do século XVIII, chamar-se-á impropriadamente de cantochão qualquer música de igreja monódica inspirada no canto gregoriano e notada de maneira similar. (p.198)

A palavra refere-se particularmente aos repertórios com textos latinos, i.e., os das principais liturgias cristãs ocidentais (Ambrosiano, Galicano, Moçárabe e Gregoriano), e num sentido mais restrito, ao repertório do canto gregoriano, o canto oficial da Igreja Católica Romana. (SADIE, 1994, Cantochão)

Desde seu surgimento que a música cristã foi uma oração cantada, que devia realizar-se não de forma puramente material, mas com devoção ou, como dizia Paulo (Apóstolo): "cantando a Deus em vosso coração". O texto era, pois, a razão de ser. Na verdade, o canto do texto se baseia no princípio – segundo Santo Agostinho - de que "quem canta ora duas vezes".

O cantochão jamais poderá ser entendido sem o texto, o qual tem primazia sobre a melodia, e é quem dá sentido a esta. Por isso, ao interpretá-lo, os cantores devem haver compreendido bem o sentido dele. Em consequência, deve-se evitar qualquer impostação de voz de tipo operístico, em que se busca o destaque do intérprete.

A notação só aparece no século IX, e uma representação precisa de altura só viria a ser encontrada um ou dois séculos depois.

O século IX, que Carlos Magno inaugurava fazendo-se sagrar imperador do Ocidente (800), revelou a si próprio uma cultura nascente. O canto gregoriano e sua honra, mas suas melodias petrificaram-se no ordo, pois a Igreja se opõe à livre expressão artística. Como os novos cantos não podiam ser mais que uma imitação dos modelos, a plateia dos fiéis se cansa e torna-se passiva, enquanto as comunidades monásticas, impacientes por enriquecer um patrimônio musical cotidianamente vivido, devem conter sua ambição criadora.

Após a queda dos carolíngios (987), um mundo antigo se encontra em vias de desaparecimento, enquanto nasce outro mundo sob os primeiros Capetos. É a grande reviravolta de nossa cultura, a ruptura dos vínculos que nos unem à Antiguidade, a aurora dos tempos modernos (muito mais que a partilha do Império de Teodósio em 395, data tradicional do início da Idade Média). Em vez dos sinais do Apocalipse, pôde-se ler no céu do ano Mil uma mensagem de esperança. A Europa desperta, as futuras nações se diferenciam, as ideias abundam no limiar do longo e fecundo período em que Gustave Cohen via brilhar "a grande claridade da Idade Média'. É então que aparecem numerosos traços característicos de nossa civilização musical, que subsistirão durante dez séculos: princípio evolutivo, especialização e complexidade crescente, contestação permanente do sistema por uma vanguarda "moderna", conceito de obra (donde a ideia de "música erudita").

Modos

Os oitos êchoi bizantinos parecem ter sido adotados bem cedo pela Igreja do Ocidente, mas sua teoria só é estabelecida no século IX por Aureliano de Réomé. Esses "modos" são caracterizados por: (p.198)

a) Seu ambitus [âmbito], oitava característica do modo, na qual se desenvolve a melodia;

b) Confinalis ou Tenor, ou "tom de recitação" (chamado "dominante" a partir do século XVII), som central em torno do qual se organizava a melodia e sobre o qual são recitadas as passagens recto tono, se for o caso;

c) Finalis "final" ou "tônica", nota conclusiva das diferentes partes da melodia, que adquire importância quando não se usa um tom de recitação.

Desde o século XI, a teoria das oitavas modais torna-se preponderante na definição dos modos. Mas compreende-se cada vez menos sua estrutura, porque perdem pouco a pouco os outros elementos essenciais de sua diferenciação. Em breve não serão mais que aspectos da oitava, obtidos por permutação da nota base. Identifica-se com tamanha comodidade um modo por sua oitava modal (modo de ré = o que se obtém de ré a ré nas teclas brancas de um piano), que se tende a confundir essa oitava característica com o próprio conceito de modo. (p.199)

Na teoria gregoriana, até o século XVI, distinguem-se quatro finais, ré, mi, fá e sol, que determinam, cada uma, uma quinta modal característica, à qual se acrescenta um tetracorde, no agudo ou no grave, para forma a oitava modal, se o tetracorde complementar estiver no agudo, o modo será dito "autêntico"; se estiver no grave, será dito "plagal" (definição proposta por Odo de Cluny no século X). Trata-se, em princípio, de duas formas do mesmo modo, agudo e grave, que mais tarde foram consideradas modos diferentes, numerando-se de 1 a 8 a série completa. Deu-se também aos modos do cantochão os nomes dos armoniai, acreditando-se mostrar, assim, sua semelhança com as oitavas diatônicas gregas correspondentes... (p.199)

Mas, em consequência de uma confusão nas nomenclaturas, os novos modos foram revestidos de falsas denominações. Assim, o "primeiro tom" eclesiástico (oitava ré-ré) foi rebatizado de dórico, herdando da doristi grega um primado que nada mais justificava! Esse erro curioso, jamais reparado, foi injustamente atribuído a Boécio, demasiado erudito para ser responsável por ele. O verdadeiro culpado seria antes o autor anônimo de uma compilação do fim do século X, Alia musica. Ele provavelmente teria confundido nomenclaturas de armoniai e de tonoi, por um contrassenso na interpretação do texto de Boécio. Eis como. Os músicos gregos haviam feito da palavra tropos ("maneira") um sinônimo de tonos ("tom", sistema de transposição). E Boécio fez bem em traduzir essa palavra por modus ("maneira"), que, em seu tempo, não tinha o sentido de modo musical. Mais tarde, fez-se referência a Boécio, sem aprofundar seu texto e sem compreender o que ele entendia por modus. Para cúmulo da confusão, traduziu-se mais tarde modus por "tom" (os "tons" eclesiásticos), ao passo que a palavra latina não designava mais tons de transposição, e sim escalas modais enfarpeladas de nomes gregos usurpados! (p.200)

Ao contrário dos gregos, os teóricos da Idade Média não se preocuparam com a altura absoluta: por isso, a notação das melodias de cantochão não precisou atravancar-se com alterações. Só o Si bemol é utilizado, permitindo passar da forma autêntica de um tom à forma plagal, sem mudar de textura (âmbito). (p.200)

Eis as escalas modais dos oito modos do cantochão, ou tons eclesiásticos, com suas diferentes denominações e algumas interpretações medievais (bastante arbitrárias) de seu etos. (p.200)

Etos de cada modo:

Dórico: nobre, tranquilo, adequado à expressão de todos os sentimentos.

Hipodórico: severo, convém à expressão da tristeza.

Frígio: entusiasta, animado (incitatus et saltatus)... ou expressão de grande cólera.

Hipofrígio: apaziguamento ou elogio.

Lídio: amável e alegre, despreocupado... ou ação consoladora.

Hipolídio: voluptuoso ou nostálgico, exprimindo o lamento.

Mixolídio: lascivo e frívolo, adequado às expressões de juventude.

Hipomixolídio: serenidade.



REFERÊNCIAS
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2001. Vol 1 - 640 p., Vol 2 - 512 p.

SADIE, S. Dicionário Grove de Música. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro : Zahar, 1994. 1060 p.

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